Sem lágrimas no rosto ando vagarosamente sem dar nenhum suspiro. Ainda sinto meu corpo e coração gelados, e por alguma razão a pulsação das minhas veias. Minhas lágrimas por mais que possam ser maior que a minha força não saem de meus olhos tão petrificados.

Nenhuma raiva ou tristeza chegam a mim nesse meu estado angustiante, onde também não sinto novos sabores, cheiros ou novos ares. Talvez a solução fosse me cortar e acabar com tudo isso, mas isso só me causaria mais dor. É tudo dor, não quero mais senti-la! Não suporto mais. Queria eu transformar toda essa frieza dentro de mim em apenas amor. E quando a dor persistir em vir novamente, que se torne amor, amor e mais amor.


Na imagem de um mulherão, nada se compara aos seus defeitos e particularidades. Essa era uma visão um pouco embaçada de João, que não lhe impedia de enxergar o que queria, e esse era o perigo: as mulheres vistas em sua vida.

Poderia se dizer que todos temos um olhar para cada tipo de coisa, que o olhar é o espelho da alma. Para seu João, seus olhos não eram apenas o espelho de sua alma, eram a passagem de entrada pra sua paixão, nitidamente por Vivi. Com eles tudo que se via era considerado perfeito, intenso e inacabável. Podia-se dizer que era um sonho, uma imagem em sua mente que não mudava de forma negativa.

Todo dia às quatro da tarde ou no seu horário de almoço. Sempre saia do escritório para tomar um cafezinho na recepção, e lá estava ela, atendendo os clientes ou digitando no computador. De lábios rosados e de cabelos longos e loiros e ainda com sua fala doce, a deixava ainda mais irresistível. Incrivelmente perfeita, isso o fazia desencadear desejos só por olha-la.

A única coisa que o afastava era a aliança em seu dedo, casada, parecia bem feliz. João sempre se lembrava de fidelidade, ele era fiel, justamente por também ser casado. Mas, bem, que mulher era aquela! Parecia um fugitivo rebelde, que fugira de casa para encontra-la e ter conversas na hora do almoço com ela. Sempre pensava em uma razão para poder passar na recepção, lamentava que o banheiro não fosse perto da sala do cafezinho.

Certo dia a viu chorando. Sua maquiagem estava escorrida. Observando-a em frente ao espelho do banheiro feminino, a via lavando seu rosto com água a soluços angustiantes. João decidiu não ver mais isso. Estava se sentindo como um intruso na vida dela só por pensar em falar com ela se haveria algum problema pessoal ou qualquer outro. Mais tarde, passou pela recepção só para falar um “olá” . Enfim se convencer que nenhuma conversa futura sobre algo pessoal pudesse afetar seu casamento. Pois é só uma conversa, como tantas outras.

Já era noite e João estava saindo do escritório. No portão de saída do estacionamento a viu sem carro andando para o ponto de ônibus. Decidiu então pará-la, já que estava de carro e a oferecer uma carona.

Na viagem tudo ocorreu bem, como o esperado. Não houve choro, abraço reconfortante e nem muitas horas de conversas que poderiam dar em diversão e vinho. Ele esperava algo a mais, mas não podia. Foi apenas uma carona. Sempre a percebia mais sedutora, charmosa e diferente, isso o deixava louco.

Ao contrário de Vivi, sua esposa Daniela era muito ciumenta, porém uma mulher alegre e contagiante. Não era fácil quando João ficava até tarde no trabalho fazendo hora extra quando ela ligava a cada cinco minutos, se ele atendesse com certeza ela iria ligar de novo. Então, de tão estressado deixava o celular desligado. Sempre quando chegava em casa, ela fazia perguntas como: “Tá me traindo com outra mulher não é?”, “Por que não atendeu minhas ligações?”, “Muito ocupado com outra?”. Até ele explicar tudo de novo, não descansava, levando-o a ir direto para a cama e dormir sem ao menos dizer boa noite.

Não que ele não amasse sua mulher, apenas a via de outro jeito. Não era e não buscava isso nela. Sua beleza o atraia, mas não o convencia que deveria conquista-la todos os dias. Às vezes não se incomodava em pensar em outras mulheres em sua cama. Em pensar em Vivi, que levava-o a loucura.

Cansado pelo dia anterior, sabia o dia que ia ter. Só de pensar em muitas horas no escritório e ligações de sua mulher o deixava estressado. De ida para sua sala encontrou Vivi saindo da sala do chefe. Curiosamente ela passou por ele de cabeça baixa sem dizer nada. No dia seguinte não a viu mais. Perguntou para alguns funcionários de lá o que tinha ocorrido com ela e ninguém, infelizmente sabia responder. Só entendeu quando viu outra pessoa no lugar dela na recepção. Não há outra resposta, ela foi embora e o deixou. Sabia que aquela partida era perigosa para ele. Estava dividido, não iria procurá-la. Não havia como, era casado.

No dia seguinte pensou muito sobre várias coisas, inquieto e impaciente foi dar uma volta pela rua, queria se desligar do trabalho e de casa. Foi então que percebeu que estava cego tão cego que não poderia ver o que estava dentro de si. Poderia agora ver, Vivi foi embora, mas mesmo se estivesse ainda em sua vida certas coisas não poderiam deixar de acontecer.

Era claro que João iria pedir divórcio, iria encontrar sua esposa na lanchonete depois. Mas, ao chegar lá, parecia que ela estava tão confortável, estava falando com outro homem que parecia um velho amigo. O homem a via com tanta felicidade, tinha afeição que parecia que a tinha só para ela. Naquela imagem, percebeu uma vontade de não perde-la. Entendeu esse ciúme que ela sentia por ele. No meio a um abraço dos dois, sentiu uma vontade de conquista-la, de gritar para todos que ela é dele, sem ao menos ter certeza nessa hora. Não era apenas possessão, era vontade. Atração por quem não tinha há tempos. Ele que a queria sentir em seus braços novamente como antes. Sentir seu corpo e respiração ofegante no meio da excitação, beijar sua boca doce e perfeita como se beijasse uma rosa tão delicada e ao mesmo tempo tão perigosa. Mesmo que seu coração sangrasse ao mesmo tempo com a dor que a causou na hora por ela, seu amor avivaria tudo como tinta vermelha jogada num quadro. Não importava o sofrimento, contanto que viesse o seu amor para cura-lo. A queria como jamais quis. E Vivi? Não valia a pena, se pensasse o quão isso duraria, não valia mais do que o tempo de uma paixão de amantes condenados ao vazio preenchido de tempo limitado.

Voltou pra casa, a esperava em seu perfeito estado de consciência, não estava alterado, apenas paciente. Quando ela chegou, meio confusa, a lágrimas, sentou-se ao lado dele e perguntou:

— Acabou?

— Posso te dizer isso mostrando uma coisa?

Então ele a pegou pela mão e conduziu até a cozinha, se ajoelhou e pediu:

— Quer se casar comigo de novo?

Sem dar tempo para ela dizer alguma coisa, continuou:

— Mas, antes que diga algo, vem jantar comigo. Vem estar comigo de novo. Não consigo ver mais nada do que você todos os dias ao meu lado.

Sem hesitar ela disse:
— A piranha te largou não é? Porque só disse isso agora? Vou pra casa da minha mãe.

E saiu, como se não valesse aquela cena toda. Como que se o deixasse faria ele a seguir e aclamar por sua volta, e então se convencer que tudo isso era verdade. Porém, ele soube: se ela o amava com certeza voltaria. Se ele a esperar ou voltar para ele, sabe que nunca mais vai querer larga-la de novo.

“Não se deixe contaminar, não se deixe contaminar”, dizia para si mesmo, como se o mundo em que vivesse fosse perfeito e indestrutível aos olhos de quem o vê. Suas gotas de suor pela testa de repente pingam no chão e fazem um grande terremoto acontecer. Sua cabeça de tão pesada não cai, ao contrário, ela flutua como se fosse um balão que vai subindo cada vez mais e indo de um lugar para outro de acordo com a ordem do vento. Se morasse em uma bolha e um estranho entrasse nela, com certeza, o estranho iria ser igual a ele e iria mudar de visão. Ia enxergar o mundo de outra forma como ele. As coisas não iam ser só histórias de livros que dão asas a imaginação, ia ser um filme próprio vivido em tempo real sem roteiros.

– Não se deixe iludir – disse o estranho o acordando.

– Hã? Está falando comigo?

– Sim, meu amigo.

– Devo ter me esquecido da hora ouvindo música e acabei dormindo. - murmurou pra si mesmo. Levantando meio perdido, perguntou:

– O senhor sabe se passou um ônibus que vai pro terminal central?

– Acho que passou há uns 10 minutos atrás.

– Hum.

Estava ainda meio confuso com o que estranho tinha falado na primeira vez com ele quando tinha acordado e não achava uma boa ideia perguntar sobre isso. Sua mãe o ensinou a nunca falar com estranhos. Sua cabeça doía. Lembrou que não era mais uma criança que tem que obedecer a ordem dos pais porque não tem noção do perigo do mundo em sua volta. Então, com um sincero sorriso disse:

– Sabia que o senhor parece muito com meu pai?

– Olha garoto, se estiver procurando pele seu pai, com certeza não sou ele. Nunca tive filhos.

Meio a sensação de pouca simpatia do estranho, um silêncio mútuo invadiu o espaço, não havia muitas pessoas passando pela rua, nem carros buzinando, ou fazendo algum tipo de barulho que se costuma ouvir no trânsito. Lembrava-se do pai, sentia saudades, ao mesmo tempo uma raiva por não falar mais com ele. Isso depois de dois anos da separação de sua mãe com ele. Não tinha rancor, demonstrava isso ao falar dele com a mãe sempre que tinha um pesadelo no meio da noite.

Chegando em casa foi logo para o quarto, ficou horas na cama ouvindo músicas com seu celular. Era tão bom, podia se desconectar das sensações de tédio e raiva. As batidas pesada da música invadiam sua mente. Eram toda a noite a destruição que poderia ser feita no mundo a fora, mas nunca foram. Jogava seus pensamentos com violência para baixo e os chutava tão forte que poderia até matá-los. Essa era a vantagem, nada que fosse real iria alegrá-lo como se faz com pensamentos e ilusões que tem sobre a realidade mal entendida.

Já era tarde e sua mãe queria conversar.

– Filho? Num vem jantar?

– Num tô com fome mãe, vai embora.- disse aumentando o volume da música.

Meio preocupada entrou no quarto sem pensar:

– Filho... Preciso que me ouça, tenho uma coisa importante pra te dizer.

– Tá. - disse fingindo ter a escutado.

– Há um tempo você sabe, tenho conhecido alguém, e quero que o conheça, sei que vai gostar dele, ele virá aqui amanhã para jantar.

Percebeu que ela num ia sair dali, afirmou com um sinal positivo como se entendesse a mensagem. Ela então saiu feliz, como se tivesse passado por uma tempestade sem nenhum caos.