A angústia que tem ouvidos



Vendo nada de interessante passando pela janela, tudo parecia perfeitamente normal, como todo dia. Ao seu olhar, a imagem de rotina noturna não era diferente, não havia praticamente nenhuma movimentação naquele restaurante. Sempre ia lá com a família comemorar algum aniversário, e agora estava. Longe como que se pegasse um trem para qualquer outro lugar, a garota não estava muito atenta às conversas que aconteciam. O barulho que estava escondido no ambiente estava dentro de si.

Na hora de apagar as velinhas do bolo, grande ideia de sua mãe, ela hesitou em apagar. Queria logo assoprar os seus órgãos internos, principalmente seu pulmão envenenado pelo silencio preenchido pelo ar gritante.

Podia a qualquer momento sair do restaurante e correr como uma louca e acordar todos que estavam dormindo, incomodar a vizinhança dizendo que tudo em sua volta não passa de uma prisão onde é manipulada pelo capitalismo, que é uma pessoa explorada pelos políticos, mas só não diria que estava angustiada e qual era sua angustia. Não gritaria nenhuma palavra para esse mundo louco fora de si, mesmo com todas as razões para culpar qualquer um que passasse pela rua, não enxergava a própria culpa de não fazer nada a respeito sobre sua angústia quando nem se quer pensou sobre isso.

Pobre noite, que apesar dos olhos poderem ver o céu escuro, ainda é confundido pelo claro da lâmpada de seu quarto. Isso não daria pra explicar, impossível, que mesmo o céu escuro presente, noites são dias, e não se precisa dessas noites, o escuro já a predominou por dentro.

Depois de dias sem noites, foi mandada pelo seu próprio dever de ir ao centro de ônibus, como ainda não tinha carro, nem dinheiro para comprar um, dependia do transporte coletivo. Ia sem demora, mesmo que as contas não pudessem esperar mais nenhum dia se quer. Foi quando que sua angustia teve ouvidos, o rapaz sentado ao seu lado não era um orelhão que podia ser visto em qualquer esquina, mas nunca escutou algo que o fizesse tão insuportável e contrariado. “Eu não aguento mais, pra mim chega! Minha vida já está ruim, não tenho paciência pra nada mais nesse mundo, eu tenho ouvidos!”, ela disse. O que ninguém nunca teve coragem de falar naquele momento foi justamente falado por ela. Depois de alguns segundos, sem resposta, a música que estava sendo tocada no celular do rapaz se repetiu, como outras vezes quando estava no ônibus. Sem paciência, que tivera tantas vezes, pegou o celular do rapaz e jogou pra fora da janela. Agora sim estava em paz, sem nenhum barulho se quer em sua cabeça. Quando o rapaz saiu do ônibus, todos o olharam. Arrependida, foi atrás do rapaz e prometeu dar-lhe outro celular, mas com fones de ouvidos. O rapaz olhou fixamente para ela e depois começou a rir, saiu andando, ignorando tudo e a deixando pra traz, como se num quisesse mais nada.